quinta-feira, 1 de outubro de 2009

3º conto

FOGO E RINOCERONTE

Lágrimas a conta-gotas na pia. Maquiagem borrada, blusa rasgada, cabelo despenteado. Se as paredes falassem, com certeza iriam sugerir uma pílula ou algum objeto pontiagudo, pois o cenário era perfeito. Logo ela... Não podia ver uma discussão que ia logo se metendo no meio para servir de almofada. Ninguém diria, ninguém... Acusariam qualquer um, mas não ela.


Começou como mais outro bate-boca típico das noites de sexta. O tilintar das chaves já denunciava, e seu coração acompanhava o ritmo. Sempre a mesma desculpa dada com bafo de desinteresse: cansaço depois de uma semana inteira de trabalho, justificando o bar, a bebida, a fúria, o assédio. Mas foi diferente, ela quis reagir. Quem diria, logo ela... Foi tudo muito rápido e impensado, só como um simples movimento brusco para se defender. Já tinha se passado de tudo pela sua cabeça, menos aquilo. Não planejara, fora tudo tão rápido... Era certo que alguma coisa ela tinha que fazer se não fosse mesmo uma “vagabunda”. Mas passou do limite, coitada, logo ela...

A porta entreaberta possibilitava que os olhos dele fitassem-na vidrados, como se querendo gritar e denunciá-la. Apertou os lábios e encostou a porta do banheiro num gesto rápido, como o que havia feito acontecer. E aconteceu que se lembrou de que não aconteceria mais nada. Estava salva, livre e aliviada. Lá no fundo, alguma coisa que restava de sua instintiva cólera esboçava um sorriso sarcástico de satisfação. Quem diria... Ninguém! Logo ela, que nunca levantou a mão contra ele nem contra o menino. E o menino já devia ter acordado. Ia entrar e entender tudo, ou não, pois era muito pequeno ainda. Grande seria a revelação.

Maldita idéia de guardar debaixo do travesseiro, parecia até que era infeliz no casamento. Mas não pensava em usar, coitada, logo ela... Se tivesse ido direto se deitar quietinha, como de costume, ele teria feito rápido e se virado para o outro lado, como de costume. Mas se passava de tudo pela sua cabeça, quem sabe foi guiada pelo inconsciente como um mecanismo de defesa. O menino ia entrar e ia ver, tinha certeza. Não estava com estômago nem saco para limpar a sujeira e esconder o corpo.

3 comentários:

A moça da flor disse...

"quem sabe foi guiada pelo inconsciente como um mecanismo de defesa" hahaaaai
eita psicologia ;p

cara... sempre fico desolada quando leio coisas desse tipo. Me dá uma sensação muito estranha. Parece que eu que tou lá no meio dessa morbidez toda. Deve ser porque mergulho muito nas coisas que eu leio.
Mas ficou muito bom. O fato de você so falar do óbito mesmo, no final deu uma agunia maior. Hehe.
Acho que personificou bem o fato da mulher querer negar o acontecido.

Cabeça só escrevendo bem. ^^

Mehazael disse...

Cara, eu gosto muito de contos curtos, especialmente os bem escritos. No entanto, tenho uma crítica (construtiva, creio eu) a fazer. O conto é bastante repetitivo e meio "explícito" às vezes. Eu sou da corrente "mostre, não conte" (vem do "show, don't tell" em inglês), que é dar o mínimo de informações possível para o leitor entender mas ainda assim ter de participar e "completar" o conto (uma receita delicada, e muitas vezes pode deixar o conto um tanto incompleto; quantas vezes já não aconteceu comigo?). E apesar de ser mais difícil, eu acho o resultado final muito mais satisfatório. Uma coisa que aprendi na Letras (meu querido curso), é que, quando terminamos um conto, voltamos e vamos "cortando" tudo que está sobrando (não é uma fórmula, nem tudo funciona assim, mas é o meu jeito de funcionar; apenas uma sugestão, não uma ordem nem uma receita) para deixar o conto apenas com o estritamente necessário, e permitir que o leitor participe, completando as informações e jogando com o narrador.
Dito isso, reitero minha opinião de que está bom, o narrador é impessoal e metido ao meso tempo. Deixou o conto com um ar meio humorístico (é para ser humor negro? Adoro humor negro) que coube muito bem e foi ainda um tanto quebrado no final, o que só agrega mais qualidade.

Bem, lá se foi um pouco de teoria literária (do conto, mais especificamente). E posso contar um segredo? Gostei mais desse conto do que dos seus poemas que li. hauehauheuheeuhea

Um abração, e continue progredindo (continuemos todos, não?)

CA Ribeiro Neto disse...

Marcelo é mais um a entrar para Campanha: "Cabeça, escreva mais contos!"

Talvez seja só gosto, mas considero seus contos mil vezes melhor que suas poesias!

Mas eu gostei do texto dizendo tudo mesmo, oh! Já ficou padronizado demais esse negócio de deixar partes para o leitor "completar".

A ultilização das personagens ficou muito massa, a entrada na história do menino e tal, tudo muito bom.

Beçote, escreva mais contos!