quinta-feira, 8 de outubro de 2009

o andarilho e o fim do mundo

andava eu a pés descalsos por uma estrada de areia
pra todo canto que olhava só via mato e urubus
já caminhava havia horas clamando a Deus por uma meia
e se não fosse pedir muito, uma tigela de cuscuz
eis que chego a uma cidade cujo nome me espantou
"Benvindo ao Fim do Mundo (pois foi tudo o que restou)"
ergui minhas mãos ao céu, mas não me veio nenhuma luz

de repente apareceu um caboré que dava medo
começou me dando água que bebi feito cavalo
"chegou no Fim do Mundo, antes tarde do que cedo"
mostrei a ele os meus pés, onde não faltava calo
o caboré pegou minhas mãos e amarrou com um cipó
e saiu me arrastando que quem visse tinha dó
"isso tá é bom só de eu não ter que andar", falo

enquanto ele me puxava, ia contando a minha história
disse como me obrigaram a vagar pelo sertão
depois de eu ter tirado o cabaço de Vitória
a mocinha que acreditavam ser a "Santa do Povão"
mas antes me fizeram comer os meus chinelos
e o couro mal cabia no meu bucho de magrelo
depois dessa, de Vitória eu nem fiz mais questão

o caboré então parou num casebre bem decente
me fez esperar fora e entrou chamando alguém
eis que para meu espanto, apareceu de repente
uma jovem bem fogosa, e eu ali, um Zé Niguém
ao notar que era Vitória, a comade que eu comera
não sabia se arriava ou se fazia uma carreira
fiquei sem entender e sem passar mal nem bem

o caboré voltou de dentro do casebre com outro rosto
se antes dava medo, restava agora me enterrar
era o Diabo em pessoa ou então um grande encosto
cheirava a fumo e a enxofre que mal dava pra aguentar
o cipó que me amarrava virou a diaba de uma cobra
que me enlaçou e só deixou um buraquinho véi de sobra
pra eu respirar e escutar o que o caboré ia falar

"quem mandou se engraçar com uma santa de verdade
fosse por mim eu lhe passava uma peixeira no miúdo
mas Aquele que me supera nunca me dá a liberdade
de fazer o mal que quero com quem se mete a ser queixudo
esta santa do meu lado nunca há de entrar no Céu
no máximo o que vai ter é um enterro num mauzoléu
por tua lábia e desrespeito, vai virar mais um bicudo"

foi então que de uma vez senti uma coisa estranha
meu corpo não era mais igual ao de um homem
tinha asas, penas pretas e uma fome de entranhas
o cangaceiro Boi Zebú abriu o seu abdômen
não resisti e avancei tão rápido quanto pensei
que aquela era minha pena pelo tanto que pequei
e só haveria de comer o que os urubus comem

até hoje aqui estou juntamente com os outros
que um dia sobrevoaram tentando me impedir
de entrar no Fim do Mundo pra salvar os meus couros
e nunca mais nessa vida eu haverei de sentir
o prazer de por os pés em terra firme como antes
e de andar pelo sertão à procura de amantes
pois agora sou forçado a só voar sobre quem vir

4 comentários:

A moça da flor disse...

Eita meu fí cada post tem superado o anterior!
Tá virando profissa!

Acho que isso foi a melhor coisa que li sua!
Adoro esses contos nordestinos. E esse ficou muito bem escrito parabéns Cabeça! Tou virando tua fã *-*

No melhor jeito Cabeça de se despedir... Beijos Xau!
xD

CA Ribeiro Neto disse...

Masnh, tu variou o vocabulário demais, tem horas que é um linguajar bem nordestino, tem hora que fica faltando isso.

Abdômem, no lugar de bucho, por exemplo.

Mas ao todo, tá muito massa. Essa é mais antiguinha, né?

Hahaaaaiiiii

Mehazael disse...

Cara, essa tá bem divertida e inteligente. O final tá tri legal (gaúcho mode on); quanto ao que o querido Neto falou, não tenho como atestar, de nordeste entendo muito pouco pra ficar me metendo a besta de comentar. hehehe
A única reclamação (se é que dá pra chamar de reclamação) é que, algumas horas, dá para notar direitinho que está faltando sonoridade. Está tudo seguindo um ritmo super bom, quando vem um verso e meio que qubra o ritmo. Para não ficar sem dar um exemplo:

o caboré pegou minhas mãos e amarrou com um cipó
e saiu me arrastando que quem visse tinha dó
"isso tá é bom só de eu não ter que andar", falo

Nesse caso, apesar do "falo" rimar com o "calo" que vem antes, a vírgula e as palavras pareceram dar um quebrada no ritmo, que precisou ser retomado na estrofe seguinte. Mas como eu disse, pequena reclamação diante do todo, que tá tri legal, tchê!

Hermes disse...

Tá massa a história, mas acho que ela ficaria melhor em forma de cordel. O contexto está todo cordel mesmo, até machista é. Ora, o cara comeu a moça, qual o problema? Aí na história não diz que foi estupro, tem isso de santinha não, deu foi porque quis. Coitado do eu lírico =/