quinta-feira, 3 de março de 2011

9º CONTO

ELE E O TÉDIO

Com o olhar fixo no teto do ônibus, ele se indagava sobre como o garoto promissor da família tinha parado ali. Todo seu percurso por um caminho aparentemente inviolável agora só parecia um grande erro ou o completo oposto disso. Sentiu-se sufocado com a visão do sólido metal que encarava e procurou algo mais reconfortante com os olhos. Deparou-se com a escotilha do veículo entreaberta de forma que pudesse ter uma noção do céu que existia lá fora, enfeitado com nuvens que passavam dando-lhe a segurança de um constante movimento.

Movimento era o que precisava. Mesmo quando, em vão, forçava uma saída da rotina para tentar se sentir vivo como antes, percebia que sua alma não acompanhava o ritmo de seu corpo, mantendo-se intacta. Pensou que aquele momento no ônibus talvez fosse a última dessas inúteis tentativas de autoafirmação, depois da qual finalmente se entregaria por completo ao acaso e abriria mão da responsabilidade por si mesmo.

De repente, em meio a todo aquele barulho urbano, identificou um som curioso e insistente, que surpreendentemente não o incomodava como os outros. Virou o pescoço a fim de descobrir a origem daquele som e deparou-se com uma jovem moça que escutava algo no fone de ouvido e batia a mão na coxa levemente, mas forte o bastante para ele ouvir, provavelmente seguindo o ritmo da música que escutava. Após alguns segundos, a moça tirou os fones de ouvido e ele virou rapidamente o pescoço para frente.

Lembrou-se de um antigo filme francês em que o mocinho era o bandido, e percebeu que nem era preciso ter tantas qualidades assim para ser capaz de conquistar uma bela moça, violando qualquer moral que ainda procurasse um sentido naquele rosto ingênuo. Convencido deste pensamento, tornou a girar o pescoço a fim de procurar mais uma vez o maior descanso que sua vista já tivera. Achou. Ela agora encostava a cabeça no vidro da janela e mantinha os olhos fechados, provavelmente tendo sonhos que ele nunca iria decifrar.

Por falar em sonhos, pensou nos seus... Não havia algo mais distante naquele momento, e teve que forçar a memória para enxergar grande parte deles novamente. Nenhum parecia ainda fazer sentido, e foi então que percebeu a real gravidade da situação que construíra para si mesmo. Situação esta que talvez fosse a única que já existiu, pois nada além daquilo aparentava um dia ter feito parte da sua vida.

Estava tão perdido em seu devaneio que nem se deu conta de quando a jovem abriu os olhos e, depois de algum tempo olhando pela janela, foi ao seu encontro com a vista. Permaneceu estático como se a surpresa e a alegria fossem demasiadas fortes para ele reagir de alguma forma. Ela lhe esboçou um leve e sincero sorriso, voltando o pescoço à posição original logo em seguida. De alguma forma, aquele gesto o despertou para a realidade dela, da qual ele sabia que, durante alguns segundos, tinha feito parte.

Sem querer, deu de cara com o ambiente do lado de fora da janela na qual ela recostava a cabeça e percebeu que sua hora havia chegado. Era o fim da linha para ele. Automaticamente, levantou-se e deu sinal para o ônibus parar. A condução diminuía a velocidade enquanto ele caminhava em direção à porta, fazendo com que aquele instante de revelação ficasse cada vez mais longe e menos real. Desceu.


O ônibus ainda estava parado quando ele ficou de cara com a jovem pelo lado de fora da janela. Ela ainda estava com os olhos abertos, mas seu olhar estava longe. Ele torcia para que ela esboçasse alguma reação à sua presença, girando o pescoço ou ao menos o olhar em sua direção.

Foi então que a mesma força que o levantara do acento contra a sua vontade dessa vez agia de um modo que parecia lhe favorecer. Como um mero espectador, ele observava seu braço se levantar em direção a ela. Seu dedo chegou a tocá-la no cabelo no mesmo instante em que o ônibus deu partida. O braço caiu à posição original em sinal de desistência.

Sem mais nada à sua frente, ele pegou o MP4 do bolso e colocou os fones de ouvido. Caminhou os mesmos passos de volta para casa, ouvindo uma música que falava de dor, maturidade e compromisso.

3 comentários:

Esyath disse...

Thiago...

realmente bom! Juro! Gostei muito! Uma história crível e ao mesmo tempo... abstrata. Realmente nos leva a pensarmos como vamos seguindo um certo padrão imposto por deveres e expectativas alheias e acabamos nos distanciando pouco a pouco de quem somos...
Mas esses momentos de reflexão não nos abandonam... a esperança é que em um momento ou outro nos levem a não desistirmos de nós... a adotarmos... outra postura... mas próxima de quem somos de verdade...

Beijos (Des)conexos!

Anônimo disse...

Nossa, eu nem sou essas coisas em prosa mas gostei da sua dinâmica. Uma cena dessas que se passaria na vida real em no máximo uns 5 a 10 minutos, e uma coisa tão simples, se tornam bem mais complexas e bonitas aos olhos da arte que é a literatura!
"Sem querer, deu de cara com o ambiente do lado de fora da janela na qual ela recostava a cabeça e percebeu que sua hora havia chegado.", esse "sua" me deixou confusa no começo, ainda bem que você especificou depois!
Ele pareceu bem melancólico no começo. Outra coisa que achei legal é que os personagens não tem nome. É ela e ele, o ônibus e o tempo.
Li bem rapidinho que nem percebi, de tão agradável leitura!
Até, e dá uma passada no meu blog! =)

Camila Travassos disse...

Se tem uma coisa que eu aprecio demais é um conto bem escrito, assumindo todas as características de conto mesmo: texto curto, poucos personagens, tempo narrativo breve, enfim, a realização do que é conciso, direto.

E devo dizer que prefiro, e muito mais, os teus textos em prosa do que os em versos - gosto de prosa, na verdade. Gosto de como tu consegues conduzir a narrativa, como foi o caso dessa. Muito boa.

(: