quinta-feira, 10 de junho de 2010

6º CONTO

UM NOVO HOMEM

Arrumava-se em frente ao espelho como quem sentia algo tão forte a ponto de a face não conseguir transparecer e, por isso, continuasse intacta. Quem o observasse não reconheceria ninguém, nem mesmo aquele ser que outrora expelia seus sentimentos de tal forma que nem o próprio se julgava capaz.

Ainda havia pistas da recente mudança: a mala entreaberta sobre a cama, as cortinas fechadas em plena noite, o aparelho de som esquecido no sofá da sala... Abotoava a nova camisa branca na qual pretendia derramar vinho tinto e o vômito de quem quer que fosse. O espelho, provisoriamente no chão e encostado à parede, assistia à cena onde ele escondia tudo, menos sua decisão. Era só agir de acordo com seu instinto puramente humano.

Olhava com desprezo e ironia para o reflexo dos velhos sapatos, condenados a um canto escuro e solitário onde as baratas pudessem fazê-lo de moradia. Sobre eles, tivera vivido acontecimentos dos quais queria lembrar para não esquecer de sua promessa. Os novos calçados eram recém comprados, e não há muito o que se falar sobre eles, senão que eram pretos e cheirosos.

Os fatos que o levaram até ali encontravam abrigo para seus resquícios nos olhos de quem os vivenciara. Assim como os sapatos, o terno cinza novo tivera sido comprado poucas horas antes, quando decidira se mudar de vez para o apartamento. Vestia-o como quem vestisse uma capa para esconder-se ou vangloriar-se em frente aos demais – era mais ou menos isso o que planejava.

Estendeu a mão calmamente para pegar a gravata que estivera repousando sobre a cabeceira da cama. Era de um tom prateado com listras pretas e cor de vinho que cortavam-na diagonalmente, perfeitamente. Enquanto dava o nó, pensou na decisão que tomara e tentou descobrir alguma coisa importante de que precisaria abrir mão, mas não encontrou. Era mesmo o que queria. Estando certo ou não, precisava daquilo para sobreviver sozinho ou entre qualquer roda de amigos ou de inimigos, o que, deveras, dava no mesmo.

Ao terminar de se vestir, virou o corpo discretamente para ambos os lados, mantendo a cabeça voltada para o espelho a fim de notar se estava bem apresentável. Afinal, este era o primeiro passo para ser como o resto dos homens. Pronto, estava pronto.

4 comentários:

Le Babiot disse...

..e os pulmões cheios de ar esperançoso, que excede o ar poluído...mudar...pena que, muitas vezes, a gente se vicia com o velho, ou, esse tipo de educação já vem de berço, cara, pena mesmo!

Le Babiot disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
CA Ribeiro Neto disse...

Mais uma vez, um conto massa!

Esse conto está muito parecido com os textos de escritores brasileiros urbanos da década de 80, 90, como Chico Buarque, Rubem Alves e tal, sendo que no deles há uma grande passagem que realmente marca o texto. Essa simples descrição e divagação sobre coisas, e falta de ação é muito contemporâneo, que eu particularmente não gosto, mas que não deixo de admirar quando se está bem feito! O seu está!

Abraço

Marcília Sousa disse...

O novo homem...um conto parado, mas que relata uma riqueza de detalhes, e o pensamento de um homem em "construção".

Beijos!!


*Tentando tirar o atrasado nos comentários!! hihihi!!!