quinta-feira, 18 de março de 2010

5º CONTO

CENTOPÉIA

Quem somos nós para falarmos sobre as coisas da vida? Para toda faísca de essência humana que se apresenta das formas mais banais é levantada uma série de questionamentos, e centenas de linhas são escritas para defender alguma outra idéia minimamente compreensível sobre a estranheza de nós, algo que seja capaz de satisfazer ou pelo menos aliviar a sede dos homens por respostas. Pobres homens... O peso das aparentes descobertas que sempre calam nossa compulsiva prepotência um dia há de nos surpreender muito. E aí, já não teremos certeza de mais nada.

Devia estar dormindo àquela hora, mas a fome era tanta que nem se dava o luxo de comer alguma coisa – fome de grandeza. Livros enchiam a escrivaninha e alguns outros móveis, papéis soltos passavam de mãos para gavetas, e destas, novamente para mãos suadas e sempre ocupadas. Os olhos se esbugalhavam para não ceder ao sono. Parava as atividades por alguns minutos somente para fazer mais e mais café. Nem mesmo um suspiro de cansaço caberia entre aquelas luzes concentradas e as folhas de papel lotadas de letras e algumas fórmulas extravagantes. Num clima de caos e cafeína, aquele ser humano acreditava em si.

No dia seguinte, era abordado por todos do trabalho com os “que anda fazendo?” de costume. Respondia mordendo a língua enquanto se esquivava desajeitado dos indesejáveis curiosos. Sua cabeça era rodeada por teorias e novas perguntas que pareciam fazer parte de seu próprio corpo. Ansiava pelo fim do expediente e abria mão do horário livre, só para matar sua fome. Seu egoísmo e sua vaidade, juntos, consumiam-no aos poucos, deixando apenas os restos que eram visíveis a qualquer mísero olho nu. Não poderia ser tão complexo assim, acontecia no dia-a-dia, até um mendigo sem o mínimo de instrução era capaz de sentir e explicar aquilo de acordo com sua típica ignorância. Mas ele procurava por ciência, por lógica, sempre atento a qualquer vulto de razão que se movesse rapidamente entre um pensamento e outro para, no momento exato, acertá-lo com seu poderio mental.

Os dias fluíam que nem segundos, e até lembrou-se da Relatividade de Einstein. Viu? Cada pergunta era mãe de uma resposta firmada, mas deviam ter sido separadas em tempos remotos por algum místico louco que só queria chamar atenção, com certeza por mero capricho. Sentia que estava no caminho certo. Só mais algumas noites em claro, algumas dezenas de papéis marcados de lado a lado, e todas as idéias estariam registradas, somente esperando por alguma mente brilhante que juntasse os pedaços na ordem certa. E assim, o tempo corria...

Em algum dia sempre comum para ele e novo para os outros, caminhará de volta para casa com a mesma pressa característica daqueles viciados que passam indiferentemente pelas portas, pelas pessoas e por qualquer outro obstáculo que julgam não existir ou não apresentar perigo, e fincará os olhos involuntariamente em uma figura capaz de lhe fazer parar pela primeira vez e observar o acaso. Neste momento, todos os números, letras e exaustões que ainda hoje circulam sua mente cairão sob seus pés e se quebrarão como vidro a uma distância que ele poderá até pisá-los, se não estiver intacto. Tudo fará sentido para ele e não para o mundo. Depois de longas unidades de tempo que não se pode denominar, ele terá todas as respostas, mas não se importará em jogá-las na cesta de lixo à sua esquerda.

3 comentários:

Paulo Henrique Passos disse...

Cara, pegando essa parte do primeiro parágrafo:

"O peso das aparentes descobertas que sempre calam nossa compulsiva prepotência um dia há de nos surpreender muito. E aí, já não teremos certeza de mais nada."

e a última parte, do último parágrafo:

"Depois de longas unidades de tempo que não se pode denominar, ele terá todas as respostas, mas não se importará em jogá-las na cesta de lixo à sua esquerda."

me faz lembrar da famosa frase socrática: só sei que nada sei.

CA Ribeiro Neto disse...

Poisé, por esse último parágrafo, penso que ele se libertou de tanta razão...

Giovana disse...

li duas vezes este texto... e parece que mesmo relendo não consegui entender muito do texto.

ontem li uma matéria sobre um gênio russo, que tbm não deixa de ser um pouco louco...

hoje, relendo, acabei fazendo essa associação... Todos que são um pouco inteligente demais, são também um pouco loucos..

Loucos para os padrões, né.