quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

8º CONTO

ELA E O DIA

Depois de uma música que falava sobre dor, maturidade e compromisso, guardou o MP4 na bolsa e recostou sua cabeça no vidro da janela do ônibus. Agora ela só queria escutar o som do mundo com tudo o que havia de bom e ruim para se ouvir: o barulho da catraca, das moedas, a conversa dos passageiros, as buzinas dos carros, o som dos motores, das crianças brincando na calçada do lado de fora, das folhas das árvores em contato com o metal de sua condução...

Fechou os olhos e só assim foi capaz de perceber a brisa que há muito tempo acariciava seu rosto. Recordou de uma viagem que fez quando ainda era menina, quando seus pais ainda estavam juntos, mas ela só queria brincar com as crianças da praia. Apenas um momento de relação com os pais durante essa viagem veio à memória, fazendo-a se surpreender por nunca ter se lembrado disso antes: a mãe abraçava o pai pela cintura, e este apoiava a filha sentada em seus ombros em frente ao pôr-do-sol, debaixo de um céu laranja. Teve dúvidas sobre se aquilo realmente havia acontecido ou se era apenas uma necessidade sua construir aquela bela imagem. Chegou à conclusão de que nenhum dos casos comprometia a validade daquele pensamento para si mesma, e então decidiu adotá-lo como a primeira vez em que parou e celebrou a vida.

Abriu os olhos levemente e olhou pela janela quando o ônibus passava em frente a uma loja de fantasias. Reparou em uma máscara exposta na vitrine e a reconheceu-a de um filme de terror ao mesmo tempo em que se lembrou de um quadro expressionista onde o pavor era evidente. O pânico gritava sua existência no mundo, mas ela era maior, não porque demonstrava indiferença ou o negava, mas porque o ouvia, o reconhecia e, mesmo assim, não se sentia ameaçada. O medo de costume era ridículo naquele momento, e a consciência deste fato a fez suspirar de orgulho.

Enquanto mexia levemente a cabeça a fim de encontrar uma posição mais confortável, percebeu que um rapaz no acento à sua diagonal mantinha o pescoço virado de tal forma que pudesse observá-la sem constrangimento. Ele parecia estar há um bom tempo fitando-a com curiosidade e apreço. A paz que a envolvia e emanava de si permitiu que ela retribuísse o olhar com um sorriso de brinde, sem preocupações sobre como aquele gesto estaria sendo interpretado pelo seu par, que ela via como parte de tudo. Mas como a vida era maior e apaixonadamente convidativa, após alguns segundos de troca de olhares, ela recolheu seu interesse à posição original.

Chegou à sua parada, mas ela não se moveu. Mesmo assim, o ônibus parou para alguém descer. Estava decidida a continuar aquela viagem até que alguém a expulsasse dali e refirmasse seus pés no chão à força. Antes que o veículo começasse a andar novamente, sentiu algo tocar sua cabeça de leve pelo lado de fora. Pensou ser a costumeira visão de mundo lhe chamando de volta, implorando-a para pousar no lugar certo. Sem mover o pescoço ou o olhar, ela esboçou um sorriso como se vangloriando por não se sentir tentada. Só então, o ônibus continuou a andar.

7 comentários:

Tainan Fernandes disse...

Gostei muito, cabeça! acho que, logicamente, tem muito de tu mesmo nesse personagem, né? gostei muito.

Tainan Fernandes disse...

não me expliquei direito: vi algumas coisas nela que eu acho que vem de tu. ah, sei explicar não.

Marcos Paulo Souza Caetano disse...

tive de ler cinco vezes para não cair em devaneio... das quatro primeiras vezes eu lia, imaginava, e caia nos devaneios da minha própria vida... Esse é o efeito da moça, do onibus e do texto, nos fazer cair em nós mesmos, enquanto penetramos na moça. E então a gente consegue não ser tentado, e sorri no fim das contas. O texto termina, nós terminamos, o onibus continua e a vida tb.

Um abraço meu querido, espero que esteja gostando das loucuras do Daniel, rsrs.

Rodrigo de Assis Passos disse...

ótimo texto! Parabéns!

Giovana disse...

Sempre que eu vejo no título que se trata de um conto eu sempre saio correndo para ler.

Fiquei até com certa inveja dela.

CA Ribeiro Neto disse...

Caralho, masnh, agora, valendo, só entra conto nesse blog, porra!

Tá muito massa, cara. A histórias toda, a base central, os elementos periféricos e o final incrível, até tocante.

E tem muito de ti nesse personagem, sim.

Paulo Henrique Passos disse...

Acredito mesmo que o ônibus é - pelo mensos na nossa situação de passageiros diários - um lugar fantástico, em todos os sentidos, como tu mostrou no conto.

e sobre a explicação do meu post, fica o que tu entendeu, cara. O bom é isso. mas o que eu posso dizer é que "dados doidos" é o acaso.

valeu.