quinta-feira, 29 de outubro de 2009

DIÁLOGO XI

"NUNCA SE CHORA POR UMA SÓ RAZÃO"

nos tropeços da vida é que a gente nota o quão morto não se está, por mais que os dias se arrastem numa conformidade que faz do futuro algo totalmente previsível. um reencontro de duas pessoas não muito importantes uma para a outra, mas que faz ambas se lembrarem de uma época com um sentido único para a vida de cada uma delas; um diálogo que, embora se trate de uma prática artificial onde objetivos têm que ser buscados, não deixam de tocar pessoalmente até aquele (e talvez principalmente aquele) que está num local permeado de estigmas que predizem uma atitude neutra; o ressurgimento do anseio por um sonho que não se tem mais certeza de sua realização, o que torna sua busca muito mais interessante e menos viciada; um filme que não diz muito sobre quem o assiste, mas que o sensibiliza de uma maneira quase nunca experienciada, talvez exatamente por causa disso...

são nesses momentos que presenciamos a existência de mudanças mesmo quando elas não se fazem perceber a olhos nus, talvez porque o termo "mudança na vida" geralmente seja interpretado como uma revolução radical no modo viver. porém, não falo deste tipo de mudança, falo de transformações de pequena proporção, mas de grandes significados. transformações que não exigem hora, lugar e nem forma para acontecer, pois antes alimentadas pela revolta contra uma vida ordinária, agora se traduzem em uma necessidade quase natural desta. digo "quase" porque não devemos desconsiderar o nosso papel fundamental na construção dessa necessidade, uma necessidade intencional.

como sempre, tudo o que nos resta é fazer o melhor possível e saber a hora de deixar as coisas caminharem. a segurança de ter tudo sob controle não chega perto da satisfação de admirar a vida acontecendo, mesmo que no final tudo dê errado. isso porque, na minha opinião, a principal função do ser humano em sua vida é muito mais ter forças pra continuar do que pular de alegria por ter vencido uma batalha. embora ambas sejam igualmente irresistíveis.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

bala de mel

ele vai e volta sempre em segredo para os íntimos
caminha em solidão esbarrando em figurantes
embora aberto à influência de detalhes mínimos
compara a validade com as certezas de antes

uma grande intromissão não traz novos desafios
ele finge desinteresse numa lembrança a calhar
depois de uns copos de conversas metade vazios
procura algum suporte de importância ao falhar

uma gema que decide pular fora de seu ovo
aceita o seu convite para o mundo descobrir
mas ele sabe friamente que não há nada de novo
e contrai todo seu corpo para a alma não subir

ele vai e sempre volta em desespero para os anjos
caminha acompanhado por fantasmas do presente
embora amante de estradas criadoras de arranjos
compara suas ações com os desejos que ela sente

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

à décima vista

através de um rosto sedento por outro
me perco em traduções de curvas perfeitas
e só quero me achar no reflexo do olhar
pois ali retorno a mim por dentro dela

uma bela sequela de uma ocasião
me leva embora para sempre mais voltar
vendo em luzes artificiais de uma metrópole
somente duas verdadeiras que as admiram

transbordam em uma vida e no universo
mas cabem em um instante bem menor
que se faz eterno por nunca ser presente
e por ter ido embora somente pra onde estou

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

o andarilho e o fim do mundo

andava eu a pés descalsos por uma estrada de areia
pra todo canto que olhava só via mato e urubus
já caminhava havia horas clamando a Deus por uma meia
e se não fosse pedir muito, uma tigela de cuscuz
eis que chego a uma cidade cujo nome me espantou
"Benvindo ao Fim do Mundo (pois foi tudo o que restou)"
ergui minhas mãos ao céu, mas não me veio nenhuma luz

de repente apareceu um caboré que dava medo
começou me dando água que bebi feito cavalo
"chegou no Fim do Mundo, antes tarde do que cedo"
mostrei a ele os meus pés, onde não faltava calo
o caboré pegou minhas mãos e amarrou com um cipó
e saiu me arrastando que quem visse tinha dó
"isso tá é bom só de eu não ter que andar", falo

enquanto ele me puxava, ia contando a minha história
disse como me obrigaram a vagar pelo sertão
depois de eu ter tirado o cabaço de Vitória
a mocinha que acreditavam ser a "Santa do Povão"
mas antes me fizeram comer os meus chinelos
e o couro mal cabia no meu bucho de magrelo
depois dessa, de Vitória eu nem fiz mais questão

o caboré então parou num casebre bem decente
me fez esperar fora e entrou chamando alguém
eis que para meu espanto, apareceu de repente
uma jovem bem fogosa, e eu ali, um Zé Niguém
ao notar que era Vitória, a comade que eu comera
não sabia se arriava ou se fazia uma carreira
fiquei sem entender e sem passar mal nem bem

o caboré voltou de dentro do casebre com outro rosto
se antes dava medo, restava agora me enterrar
era o Diabo em pessoa ou então um grande encosto
cheirava a fumo e a enxofre que mal dava pra aguentar
o cipó que me amarrava virou a diaba de uma cobra
que me enlaçou e só deixou um buraquinho véi de sobra
pra eu respirar e escutar o que o caboré ia falar

"quem mandou se engraçar com uma santa de verdade
fosse por mim eu lhe passava uma peixeira no miúdo
mas Aquele que me supera nunca me dá a liberdade
de fazer o mal que quero com quem se mete a ser queixudo
esta santa do meu lado nunca há de entrar no Céu
no máximo o que vai ter é um enterro num mauzoléu
por tua lábia e desrespeito, vai virar mais um bicudo"

foi então que de uma vez senti uma coisa estranha
meu corpo não era mais igual ao de um homem
tinha asas, penas pretas e uma fome de entranhas
o cangaceiro Boi Zebú abriu o seu abdômen
não resisti e avancei tão rápido quanto pensei
que aquela era minha pena pelo tanto que pequei
e só haveria de comer o que os urubus comem

até hoje aqui estou juntamente com os outros
que um dia sobrevoaram tentando me impedir
de entrar no Fim do Mundo pra salvar os meus couros
e nunca mais nessa vida eu haverei de sentir
o prazer de por os pés em terra firme como antes
e de andar pelo sertão à procura de amantes
pois agora sou forçado a só voar sobre quem vir

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

3º conto

FOGO E RINOCERONTE

Lágrimas a conta-gotas na pia. Maquiagem borrada, blusa rasgada, cabelo despenteado. Se as paredes falassem, com certeza iriam sugerir uma pílula ou algum objeto pontiagudo, pois o cenário era perfeito. Logo ela... Não podia ver uma discussão que ia logo se metendo no meio para servir de almofada. Ninguém diria, ninguém... Acusariam qualquer um, mas não ela.


Começou como mais outro bate-boca típico das noites de sexta. O tilintar das chaves já denunciava, e seu coração acompanhava o ritmo. Sempre a mesma desculpa dada com bafo de desinteresse: cansaço depois de uma semana inteira de trabalho, justificando o bar, a bebida, a fúria, o assédio. Mas foi diferente, ela quis reagir. Quem diria, logo ela... Foi tudo muito rápido e impensado, só como um simples movimento brusco para se defender. Já tinha se passado de tudo pela sua cabeça, menos aquilo. Não planejara, fora tudo tão rápido... Era certo que alguma coisa ela tinha que fazer se não fosse mesmo uma “vagabunda”. Mas passou do limite, coitada, logo ela...

A porta entreaberta possibilitava que os olhos dele fitassem-na vidrados, como se querendo gritar e denunciá-la. Apertou os lábios e encostou a porta do banheiro num gesto rápido, como o que havia feito acontecer. E aconteceu que se lembrou de que não aconteceria mais nada. Estava salva, livre e aliviada. Lá no fundo, alguma coisa que restava de sua instintiva cólera esboçava um sorriso sarcástico de satisfação. Quem diria... Ninguém! Logo ela, que nunca levantou a mão contra ele nem contra o menino. E o menino já devia ter acordado. Ia entrar e entender tudo, ou não, pois era muito pequeno ainda. Grande seria a revelação.

Maldita idéia de guardar debaixo do travesseiro, parecia até que era infeliz no casamento. Mas não pensava em usar, coitada, logo ela... Se tivesse ido direto se deitar quietinha, como de costume, ele teria feito rápido e se virado para o outro lado, como de costume. Mas se passava de tudo pela sua cabeça, quem sabe foi guiada pelo inconsciente como um mecanismo de defesa. O menino ia entrar e ia ver, tinha certeza. Não estava com estômago nem saco para limpar a sujeira e esconder o corpo.